sábado, 30 de maio de 2020

PRESSÃO EXTRA

O texto de hoje não fala de regras nem da atuação dos árbitros um determinado jogo. Não fala de atitudes tidas por jogadores, treinadores ou oficiais. Não fala de nada que o público possa fazer durante um jogo. Fala de bom senso. Fala de respeito.

Li há algumas semanas num diário desportivo uma notícia que me envergonha só pelo facto de ser notícia. Era algo como “os árbitros vão viajar no mesmo avião que as equipas visitantes nos jogos nas ilhas”, a respeito do regresso do futebol e das medidas impostas para recomeço da atividade. A primeira questão que coloquei a mim mesmo depois de ler aquilo foi “e depois? Viajam com as equipas… e depois?”. O que é que importa se partilham o mesmo espaço com as equipas? Vamos agora desconfiar da seriedade dos árbitros e dos elementos das equipas só porque sim? Agora as pessoas não podem estar juntas, que se cria logo um clima de suspeição?

Não, obviamente não quero comparar a realidade andebolística ao futebol. Há realidades que não são comparáveis a nenhum nível. Mas infelizmente esta questão é transversal a todas as modalidades porque, infelizmente, há ainda muita gente que coloca o rótulo da falta de seriedade em tudo o que implica arbitragem.

Sempre houve maus árbitros e vão continuar a haver. Sempre houve jogos mal dirigidos por bons e maus árbitros e vão continuar a haver. Agora, fazer de uma viagem notícia é simplesmente indecente.

É verdade que há árbitros mais conscienciosos que outros, e que sentem com mais intensidade os seus sucessos e os seus insucessos. Mas nenhum árbitro gosta de errar. Nenhum árbitro gosta de se sentir injustiçado. E, mais que tudo, nenhum árbitro gosta de ser crucificado em praça pública só porque é árbitro. Os árbitros também têm sentimentos, pasme-se!

Esta notícia deixa no ar um clima de mistério e suspeição que é, no mínimo, aberrante.

Gosto sempre de fazer paralelos com a minha experiência pessoal. Sempre partilhei aviões quando tive de me deslocar às ilhas. Sempre partilhei espaços de refeições com equipas, antes e depois dos jogos, e nunca isso me influenciou nas minhas decisões. Como eu, quase todos nós. São os momentos de convívio fora dos pavilhões que mais nos enriquecem pessoal e socialmente. São as pessoas que conhecemos, os amigos que fazemos e que mantemos, o mais importante de tudo o que levamos do Desporto. Claro que o que acontece dentro do campo reflete o nosso trabalho diário, mas é também o que acontece fora do campo que nos permite abrir horizontes e transformarmo-nos em pessoas melhores. Para muitos pode não fazer sentido, mas a minha carreira tem tantos momentos marcantes fora do campo como dentro dele.

Fiz muitos amigos na Arbitragem, grande parte deles fora do ambiente de jogo, ou pelo menos solidifiquei essa relação fora do terreno de jogo.

Notícias como esta são apenas lamentáveis. Faço votos para que a comunicação social deixe as pessoas serem pessoas e não as queira transformar em bichos do mato, que deixe as pessoas fazer o seu trabalho, com a pressão inerente à atividade mas sem a pressão imbecil da suspeita gratuita.

Todos nós somos mais competentes quando as pessoas acreditam em nós e nos dão margem para mostrarmos o que valemos.

* Este mês, partilhei este texto igualmente no Magazine ACL.