terça-feira, 31 de dezembro de 2019

A DECISÃO DA FINAL DO MUNDIAL FEMININO

Parece-me este o tema certo para regressar ao ativo aqui no blogue, após imenso tempo de ausência.
O último campeonato do mundo feminino ficou marcado por uma decisão arbitral extremamente polémica, como todos devemos estar a par. Deixo aqui o link do youtube, para que a possamos rever:


Ora, as opiniões ainda não são unânimes e o caso ainda é muito discutido no meio andebolístico. Deixo aqui a minha visão do lance e a minha própria análise, sujeita, como sempre, a discussão.
Vamos desconstruir a regra e as opções para análise do lance:
  1. A jogadora espanhola tem de estar a 3 metros?
    Não.
    No vídeo ouve-se o comentador a falar dessa hipótese, mas isso é uma asneira. Só há dois tipos de lançamentos em que os defesas não têm de estar a pelo menos 3 metros do executante:
    - lançamentos de reposição, quando não é possível o defesa estar a menos de 3 metros, se estiver junto da sua área de baliza (ex.: lançamento de reposição no canto do terreno de jogo, com o defesa encostado à área de baliza);
    - lançamentos de baliza.
    Um excerto da regra 12:2 diz que:

    12:2
    É permitido aos jogadores da equipa adversária estarem imediatamente fora da linha de área de baliza (...).

    Como é fácil de ver, esta questão da distância dos 3 metros não pode afetar a decisão da equipa de arbitragem.

  2. A jogadora espanhola está com os pés fora da área de baliza?
    Sim.
    O posicionamento dos pés dessa jogadora é perfeitamente legal. Como está explícito no excerto da regra que coloquei em cima, os jogadores defensores podem estar imediatamente fora da linha de área de baliza, o que é o caso. É possível observar nas imagens que, no momento do salto, o posicionamento da atleta é perfeitamente legal.



    Logo, esta questão também não é relevante para esta análise.

  3. Qual é o posicionamento dos braços da jogadora espanhola?
    Esta sim, é para mim a grande questão.
    A imagem a seguir (em especial o quadro da direita) mostra o momento.


    Na minha opinião, os braços estão no "espaço aéreo" da área de baliza, o que quer dizer que a bola não cruzou ainda a linha de área de baliza "para dentro do campo".
    Diz um excerto mais alargado da regra 12:2 que:

    12:2
    Considera-se que o lançamento de baliza foi executado quando a bola, lançada pelo guarda-redes, ultrapassou completamente a linha da área de baliza.
    É permitido aos jogadores da equipa adversária estarem imediatamente fora da linha de área de baliza, mas não lhes é permitido tocar a bola até que esta tenha ultrapassado completamente a linha de área de baliza (Regras 15:4, 15:9 e 8:7c).

    Há aqui uma infração à regra 12:2, no que respeita ao impedimento da execução do lançamento de baliza devido ao posicionamento dos braços.

  4. As árbitras estavam bem posicionadas?
    Sim.
    Ainda que entendendo que a decisão possa ser dúbia e passível de outras interpretações, a verdade é que o posicionamento da árbitra responsável pelo acompanhamento da jogada lhe permite tomar uma boa decisão, como se vê pela imagem.



  5. É desqualificação e livre de 7 metros porquê?
    Só consigo entender que esta situação tenha sido analisada de acordo com a regra 8:10 c), que diz o seguinte:

    8.10 
    Se os árbitros classificam a conduta antidesportiva como extremamente grave, um castigo é concedido de acordo com as seguintes normas.
    Nos casos que envolverem as seguintes infrações mencionadas nas subsequentes alíneas a) e b), servindo como meros exemplos, os árbitros devem elaborar um relatório escrito após o término do jogo, para permitir aos organismos competentes tomarem as medidas adequadas:
    (...)
    Nos casos que envolverem as seguintes infrações mencionadas nas subsequentes alíneas c) e d), um livre de 7 metros é concedido à equipa adversária:

    c) Se, durante os últimos 30 (trinta) segundos de jogo, a bola não está em jogo e um jogador ou oficial de equipa impede ou atrasa a execução de um lançamento livre a favor do adversário, com o objetivo de impedir que eles sejam capazes de efetuar um remate à baliza ou obter uma clara ocasião de golo, o jogador/oficial infrator é desqualificado e é atribuído um livre de 7 metros à equipa adversária. Este caso aplica-se a qualquer tipo de interferência (por exemplo: através de subtil contacto físico, interferir na execução de um lançamento como intercetar um passe, interferir na receção da bola ou não a largar).

    Ou seja, ao impedir a execução do lançamento, a jogadora espanhola está a impedir a execução de um lançamento que poderia criar uma clara oportunidade de golo. Assim, só poderá haver desqualificação e livre de 7 metros.
É importante repetir que esta é a minha visão pessoal do lance e da decisão tomada.
Aceito perfeitamente que me possam dizer que não é claro que a bola sai da área de baliza, mas em consciência e estando tão bem posicionada, se a árbitra entende que a bola não sai, esta é a única decisão que pode ser tomada. 
Assim, entendo esta decisão como boa e extremamente corajosa.

sábado, 6 de abril de 2019

ARBITRAR vs. GERIR

Nem todos os jogos se dirigem da mesma maneira. Sim, as regras são as mesmas e devem ser aplicadas por igual. Puxar o braço por trás em ato de remate é desqualificação num jogo da final do campeonato do mundo, da mesma maneira que o deve ser num jogo do regional de infantis. Um ponta que cruza a área de baliza para entrar a segundo pivot num jogo da primeira divisão deve ser sancionado por violação da área de baliza, da mesma forma que um ponta que o faça num jogo de minis o deve ser. As regras são para ser aplicadas sempre. Mas a forma de atuar tem obrigatoriamente
de ser diferente.

Num jogo de miúdos, jovens, ainda a dar os primeiros passos na modalidade, a presença do árbitro deve ser notada de um ponto de vista pedagógico. E ao dizer “pedagógico” não estou a excluir sanções disciplinares duras. A pedagogia está em explicar o que se faz e como se faz quando tal se impõe, está em ter uma forma de estar em campo que faça os miúdos sentirem-se seguros, está em conseguir que os mais novos (principalmente esses!) se habituem a ver o árbitro como um misto de garante de honestidade e de autoridade. Nestes jogos, o árbitro deve ser próximo dos jogadores.

Vamos agora passar para um jogo de juvenis ou juniores, por exemplo. Já não são crianças mas ainda não são homens feitos. Os atletas, nestas idades, têm uma tendência natural para se tentarem afirmar uns perante os outros, perante os árbitros, perante os pais até. É natural que essa tentativa de afirmação leve, não poucas vezes, a desafios perante quem toma as decisões. E como deve o árbitro agir aí? Compreendendo, mas sendo firme. É essencial que nestes jogos o árbitro assuma um papel pedagógico q.b., sem abdicar da conduta cada vez mais rígida que deve acompanhar a idade dos atletas.

E num jogo de alta competição, com todos os intervenientes a saberem perfeitamente o que fazem, e tantas vezes com o pavilhão cheio a pressionar? A pedagogia deve ser mínima, apenas a exclusivamente necessária à condução do jogo. Aqui, a parada é normalmente mais alta e costuma haver mais em jogo. Quem está dentro do campo nestes momentos sente a necessidade de gerir as emoções de forma diferente, e também sente que os seus erros se pagam de forma bem mais cara do que nos outros jogos. Árbitros, atletas e treinadores. Isso provoca uma tensão natural que é preciso gerir. Uma sanção disciplinar mal dada, um livre de 7 metros mal assinalado, uma quezília que não se resolve… tudo tem consequências. Daí a necessidade de gerir, não só aplicando as regras, mas sabendo tirar partido de todo um conjunto de soft skills que um árbitro de topo tem de ter.

Com este texto, não pretendo (nem era essa a minha intenção) dar os pormenores de como deve ser uma arbitragem em cada escalão. Quis apenas salientar que é normal, e até suposto, que a postura dos árbitros nos jogos das camadas mais jovens seja completamente diferente daquilo que vemos na televisão.

NOTA: Artigo partilhado com o Magazine ACL.